Como você vê a questão das identidades culturais, da valorização da diversidade, no contexto atual?
Eu sempre digo aos meus alunos que para se tornar universal, você tem que ser, antes de tudo, regional. Acho que um povo não pode falar de "antena parabólica" se não conhece suas próprias raízes. Acredito muito em uma cultura de origem. Quando você conhece sua cidade, tem sua noção de cidadania, de pátria, de etnia, você trabalha com uma diversidade muito mais ampla. O Brasil é um país plural, temos influência de muitas nações distintas. Acredito que essa discussão seja de uma importância enorme, por que é a cara do Brasil essa diversidade cultural, mas respeitando cada origem, cada cidade, cada etnia local.
Nós tivemos no Brasil, graças a Deus, a Semana de Arte de 22, com Oswald de Andrade, Monteiro Lobato, Anita Mafalti, Djanira, esse povo todo que balançou a cultura brasileira. Ou seja, começaram a fazer um trabalho de raiz. Eu sou seguidora disso, com muito orgulho. Quando você vai para o exterior e entra numa galeria contemporânea, parece que as obras são todas iguais. Ao meu ver a arte contemporânea, não importa que linguagem, você tem que olhar e saber de onde veio, embora tenha uma leitura universal. É difícil criar essa dualidade, mas tem que existir, senão fica igual a shopping center. Eu penso que tudo o que você faz como cultura, o fato de você existir, tem que carregar consigo a sua regionalidade
Que artistas você considera mais representativos da nossa cultura?
Eu entrei na Escola de Belas Artes na época de Juarez Paraíso, acompanhei a vida dele como artista, como professor e como diretor. Considero ele um artista perfeito, trabalha com qualquer técnica. Cito Juarez como mestre, como ser humano, admiro muito a obra dele. A de Sante Scaldaferri também, falando da geração anos 50. Da minha geração, acho que Maria Adair é uma artista pioneira, foi colega, amiga, companheira de universidade, trabalhamos juntas desde o Marista, lá se vão 30 anos desde que a gente começou a ensinar Educação Artística nas escolas. Dessa geração nova, eu gosto muito da obra de Bel Borba. Não só da obra em si, gosto dele como artista, pela sua ligação com a cidade, pela sua inquietude. O artista tem que ser inquieto, tem que estar o tempo todo "quebrando paredes", inquieto com sua vida, com sua cidade, com seu planeta. Adoro a obra de Regina da Silveira, me acho muito parecida com ela, no sentido de ser uma educadora e ser uma artista, nunca ter deixado uma coisa de lado. Gosto muito de um baiano, Mestre Didi, o trabalho dele é incrível, muito enraizado, forte, contemporâneo... Ele cria totens, completamente afro, inclusive é negro, sacerdote, ligado ao candomblé, não se pode nem tirar fotografias dele. É um exemplo de conservar a raiz e manter uma linguagem universal. Como a Regina da Silveira, que trabalha com sombras projetadas, você se vê como sombra e como luz, um trabalho muito atual, muito bonito. A nível de mundo, Louise Bourgeois, uma francesa que hoje mora em Nova Iorque. Deixei de citar uma artista que saiu da Bahia: Ana Mariane. É arquiteta, mora em São Paulo, fotógrafa, trabalhou com casas regionais, fachadas, tem livro publicado, um trabalho lindo, que também fala de raiz e tem essa noção de mundo diversificado. Tenho duas grandes paixões na vida, uma é Picasso - eu era adolescente quando ele morreu, fiquei até de luto - que foi um grande marco na arte mundial, fez de tudo, abriu fronteiras para todos nós; e Kandinsky, ele e Klee eram artistas e educadores, gosto muito da obra deles, especialmente a atuação na Bauhaus.
Que pensadores têm esses aspectos mais presentes em suas obras?Eu tenho uma paixão por Monteiro Lobato, foi um marco muito forte na literatura. Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Martins Gonçalves - a Escola de Teatro deu um salto de qualidade. Outro dia estava lendo a dissertação de mestrado da Professora de dança Jussara Martins, ela fez uma tese sobre Edgard Santos, fiquei apaixonada pela vida dele, pela obra dele. Nós temos baianos muito bons, pessoas que abriram caminhos. A nível nacional, eu gosto muito da Fyga Ostrower, ela tem uma obra fantástica na arte e na educação. Fiquei encantada com a obra de Regina Machado, é uma historiadora que trabalha com resgate de contos infantis, anda pelo Brasil inteiro buscando canções, contos, narrando em escolas públicas, para tirar um pouco a criança do computador e fazer conhecer sua origem. Ana Mae Barbosa, acho uma guerreira, no campo da arte-educação. Milton Santos, estou sempre lendo suas publicações, uma pessoa fantástica. A nível mundial, gosto muito da obra de Merlau-Ponty, um trabalho que eu sigo na minha linha de criação. Li muito Platão no doutorado, fiquei apaixonada pelo alicerce que ele criou na Filosofia. Estou lendo Bachelard, A Poética do Espaço, A Psicanálise do Fogo, As Águas e os Sonhos, e vejo como ele é atual, fala de questionamentos que nós estamos vivenciando. Eu penso que arte, filosofia, tudo que mexe com cultura, não tem idade, é eterno. Estou ouvindo uma monja da virada do milênio passado que foi uma grande revolucionária, Hildegarde Von Bingen, foi poetisa, musicóloga, brigou com os homens, foi a primeira mulher a cantar em igreja, a gente tem é que aplaudir.
Quanto à educação, como você avalia o papel do ensino na formação da nossa identidade cultural?
Penso que o educador tem que olhar o homem de uma maneira muito inteira. Quando comecei a dar aulas, eu estudava muito a vida de Siro Arobindo, um educador indiano. Ele dizia que o homem é um complexo entre físico, mental, vital, psíquico e espiritual; que o homem tem que pensar nesses cinco aspectos, trabalhar todos os potenciais, para ser feliz como unidade. Eu não acredito em mudanças radicais, acredito em mudanças inteiras. Se você olha um ser em desenvolvimento e está preocupado que ele se exercite fisicamente, trabalhe sua mente, seja um ser espiritualizado, trabalhe na energia dele, no espiritual e no psíquico, ele vai se tornar um ser feliz. Então esses aspectos têm que ser considerados na educação em geral. Penso que o papel da educação é despertar no jovem o seu potencial, tentar abrir caminhos para que ele encontre a porta certa. A profissão que ele abrace, que ele tente ser inteiro naquilo. Eu me considero uma professora em extinção, por que trabalho por amor. Aluno meu nunca me viu reclamar de dinheiro, eu corro atrás, vendo quadro, escrevo texto, me viro. Acho que o artista tem que estar ligado social e politicamente, não existe arte para embelezar casa. Arte é para falar de mudança, de transformação, deixar você diferente depois de ver uma obra. Assim como a educação, ela tem que ter uma ação transformadora. Foi isso que eu tentei fazer em sala de aula todo o tempo: deixar meus alunos inquietos
Fale um pouco mais sobre a sua arte, como é esse processo de criação?
Cada momento que eu mostro meu trabalho é uma surpresa, por que eu não sou a mesma, eu já mudei. Tecnicamente, eu pesquiso pigmentos, terras, fibras, corantes, desse material eu faço a tinta e o tear. Trabalho com minhas raízes, literalmente. O nome da minha tese é Cantos, Contos e Contas. Então eu trabalho com cantos, pequenos lugarezinhos que vou encontrando pelo mundo, a canção que vem desses lugares; trabalho com contos, coisas que me contam, histórias de vida, crio contos também; e trabalho com contas, miçangas, ligadas aos nossos orixás, que vieram da África, têm toda uma história. Quando eu comecei a trabalhar em São Paulo, ficava observando a cidade. Se eu olho um prédio todo apagado, sei que ele está de janelinhas fechadas, mas eu, como artista, posso acender a janela que eu quiser. O meu trabalho atual tem pequenas janelas de metal que você pode abrir e penetrar no desconhecido. Eu trabalho com o meu dia, com as minhas necessidades de ser humano, cidadã brasileira, soteropolitana, branca, professora... por que arte e vida são inseparáveis. Quando fui expor meu trabalho ano passado, eu queria uma senzala que encontrei em São Paulo, só que as paredes estavam todas cobertas de cimento. Pedi autorização do museu, chamei operários, trabalhei um ano, todo final de semana, e escavei as paredes. Quando eu vim para a Bahia, fiz uma instalação com o que eu tirei das paredes, um monte de entulho coberto de rosas brancas, para purificar. Eu tinha acabado de perder duas amigas, uma é Maristela, aquela jornalista que foi assassinada. Isso me incomodava muito, eu tinha que fazer algo. Então quando montei essa exposição aqui, pedi a Ana Paula Bouzas que fizesse uma performance. Queria que ela falasse da vida e da violência que a mulher sofre nas grandes cidades. Usei muitos cubos brancos, como se fossem cidades fechadas. Ana Paula fez uma performance no cubo, simbolizando essa fragilidade de todos nós, do ser humano que está vivo e vai ao encontro da morte, então ela se despe de tudo, se entrega como num sonho. Como se ela se libertasse da dor e pudesse, enfim, descansar. O artista tem que falar disso, tem que fazer com que as pessoas que visitam um museu chorem, sintam, saiam de lá falando, saiam diferentes, para que elas possam fazer algo também. É essa a ação transformadora da arte em que eu acredito.
Viga desenvolve sua tese de doutorado no Espaço de Arte (Vitória) - tel. 337 4603.
ORIGEM: Entrevista site SPPC Cultural