Miécio Caffé - a memória em nanquim (uma crônica possível)
Por Ruy Jobim Neto
21/10/2005
Por Ruy Jobim Neto
21/10/2005
Para o baiano de Juazeiro, que morava frente a frente com o São Francisco (hoje, um rio às portas da UTI), que curtia atravessar as caudalosas águas a nado, desenhar a carvão em paredes branquinhas, o homem que primeiro caricaturou Pelé e José Vasconcelos, o criador imortal das Balas Futebol, qualquer crônica é pouca.
Muitas matérias saíram sobre o grande caricaturista em razão de sua morte, em março de 2002, aos 82 anos de idade. Várias foram as entrevistas ou por ele concedidas ou que ele mesmo empreendeu, durante os mais de 40 anos de residência em São Paulo, com os maiores nomes da MPB, de quem era amigo pessoal, com quem bebia whisky. Nem tão complicado é falar de Miécio, nem tão simples assim.
Fui o curador de sua última exposição. Ocorreu em São Vicente, no Litoral sul paulista, mui singelamente, no espaço climatizado do CCBEU. Foi quando tive os primeiros contatos com o passe-patourt. Só que desta vez eles eram para emoldurar a obra do caricaturista que, inclusive, esteve no local para prestigiar a si mesmo.
Miécio teve três momentos em vida, muito bem separados. Um, da infância na Bahia, a juventude boêmia no Rio e os tempos da soldadesca. O segundo, ao lado da amada esposa, a gaúcha Hedy, com quem viveu até a morte dela, em 1992. E, finalmente, depois disso tudo. O terceiro desses "movimentos", em adágio, foi o mais prolongado, o mais doloroso. Custou-lhe dez anos. Quase um réquiem.
Eu o conheci em 1986, na USP, nas colméias da Faculdade de Letras, numa palestra sobre quadrinhos, algo promovido pela Circo Editorial (de Luiz Gê e Toninho Mendes), algo para promover os artistas da casa. Miécio foi ao lado de Paulo Caruso. Miécio, de óculos escuros, sorridente, e Paulo, todo reverente ao mestre, fazia-lhe escada. Eu era um ouvinte, entre tantos.
Dez anos separaram esse momento do outro nosso encontro, quando eu, já professor de Histórias em Quadrinhos, fui-me perguntado por uma funcionária da Prefeitura de Praia Grande, a querida Carmen (filha da não menos querida e de grande lembrança, a professora Graziela Dias Sterque). A pergunta era se eu tinha notícia de que morava, naquelas paragens, um grande nome da caricatura brasileira. Logo quis saber quem era. Miécio Caffé de Oliveira. Propus-me a um telefonema para o artista.
Dele fiquei amigo, comecei a freqüentar sua casa. Acompanhei-o a Piracicaba, naquela fatídica passagem de agosto para setembro em que Lady Di morreu em Paris. No hotel, pela TV por assinatura, víamos as notícias sobre o fim trágico da princesa. No saguão, apenas a nata do nanquim brasileiro se tropeçava, encontrava, cumprimentava, saía e entrava de vans em direção aos variados eventos do Salão de Humor, em 1997. Miécio havia subido ao palco (com apresentação de Luis Fernando Guimarães) ao lado de outros dois monstros sagrados, Rodolfo Zalla e Lan. Os três foram homenageados.
Uma vez escrevi um artigo para o site Agaquê, do Núcleo de Pesquisa de História em Quadrinhos da USP sobre esses dias ao lado de Miécio. Um filme foi feito sobre ele, um curta-metragem. Afinal, em 35mm, nas telas, Miécio estará retido na memória dos que assistiram e dos que irão assistir a esse curta. Miécio, por sua vez, não está em muitos compêndios alfabéticos sobre a Caricatura nacional, o que não deixa de ser um deslize desses livros. Tempos de correções e erratas, por favor.
A coleção de discos de Miécio era algo de encher os olhos, mesmo sendo o rescaldo daquilo que outrora foi, e que foi entregue aos cuidados do MIS, em São Paulo. As capas com desenhos do artista eram briosas, as páginas antigas de jornal - todas muito bem catalogadinhas pela companheira Hedy, ao longo de minuciosos anos - eram de um cuidado só. Andar pelos quadros e fotos de Miécio ao lado dele era um privilégio, inclusive o quadro de dona Hedy, sobre a cama dele, um quadro com o efeito de enxergar, através dos doces olhos dela, quem quer que fosse, em qualquer ponto do quarto. Miécio se sentia protegido por um desenho que ele fez da esposa.
Ouvir música ao lado dele, não importasse o quê, era outro privilégio. Vê-lo chorar ao lembrar a querida esposa, e de como pretendia fazer-lhe companhia, era tocante. Ver as imensas galerias de fotos que ele possuía de seus "personagens" era passagem obrigatória. Lembro de Elis Regina, aos montes, num de seus gavetões metálicos. Lembro de ele falar como o pincel resolvia tudo, não ele. Tínhamos que perguntar ao pincel sobre a obra do caricaturista. Trabalhadores incansáveis, os dois.
Herança, enfim, está e fica retida em nós, em cada momento. Somos inexoravelmente o resultado, para melhor ou para pior, do que outros, anteriores, já experimentaram às expensas. Um acervo artístico e humano como o de Miécio fica guardado na nossa memória, exatamente como uma boa peça teatral. E, neste exato momento, entre uma roda ou outra de whisky, uma roda bem boêmia, ao lado de Vinícius, Orlando Silva, alguns jogadores famosos do passado - e a mais nova ingressa da turma, Emilinha Borba -, estão lá Miécio e sua amada Hedy, juntos. Mesmo que ele esqueça o nome de alguns ao cumprimentar, como era de costume. Mesmo que a esposa passe por trás dele, infinitas vezes, e com toda a paciência do mundo continue a dizer, eternidade afora: "Miécio, esse é fulano de tal".
Essa crônica me foi encomendada por Eloyr Pacheco, o sujeito para quem certa vez mostrei uma obra de Miécio, verdadeira raridade, de 1945, uma História em Quadrinhos do grande caricaturista - algo bem no estilo Lee Falk - chamada Fu Manchu. Um grande abraço, Miécio. E obrigado por ter conduzido o seu pincel com sua baianidade tão universal.